"Agora que já passou um pouco a loucura com o casamento da deputada Maria Vitória, algumas palavras sobre.
Eu não conhecia essa mulher. Vi-a, certa vez, num restaurante que frequento, e vi que ela usava preto da cabeça aos pés, exceto por um detalhe. A saia era grossa, de neoprene, com um babado na ponta, e me chamou a atenção o sapato. Eu tinha visto o sapato na vitrine da Prada, dias antes, sabia que custava 25.000 reais e isso não podia passar despercebido. Só soube quem era a mulher do sapato porque a dona do restaurante veio comentar, feliz, depois, que ela tinha clientes importantes. Eu me senti bem desimportante porque meu sapato não custava 2% daquele da Prada.
Ouvi, sem querer, a conversa do casal ao meu lado. Eles falavam alegremente sobre os preparativos de um casamento, que devia ser o deles. Depois eu ia lembrar que a ilustre deputada tinha sido flagrada em plena sessão da Assembleia a escolher vestidos. Etc.
Do ângulo onde eu estava, logo após o almoço deles, vi que cada um entrou num carro que, sozinho, deve ser a soma de todos os meus salários nos últimos 30 anos. Eram carros pretos, grandes, possivelmente blindados. Confesso que naquele dia pensei muito sobre valores e gostos. O sapato da Prada — não por ser da Prada — era maravilhoso. Um sapato bicolor, de salto grosso, uma obra prima do design. Pensei cá comigo que não adianta usar coisas lindas se o sujeito não é lindo. A questão não é usar Prada ou não. A questão é outra. Bom gosto não é parente da quantidade de grana que se tem na conta ou no limite do cartão, seja o cartão pessoal ou corporativo… E estilo é uma coisa quase indefinível. Há tanta dignidade e criatividade nas roupas de algumas pessoas tão simples…
Há um rapaz em situação de rua, por exemplo, que sempre encontro pelo Centro de Curitiba. Eu queria ter um décimo do gosto como ele coloca as roupas sobrepostas. Há beleza e criatividade nisso, que, claro, só não me choca porque tenho muito claro que criatividade também não tem a ver com grana. Quando vejo os jornais locais das grandes capitais, com aquelas secções de gente da “elite”, em festas e lançamentos, em Casas Cores e vernissages, eu simplesmente rio. E não sei se gosto muito quando designers usam pessoas em situação de rua ou pacientes de hospitais psiquiátricos para servirem de inspiração. Há certa violência nisso, há certa invasão, mas claro, cada sujeito vive sua criatividade, e o morador da rua não tem lá muita opção… e o sujeito num hospital (ele visto pela sociedade com problemas mentais) não tem as amarras do mercado do consumo. Usa o que crê. O que tem à mão. E, verdade seja dita, designers têm total liberdade para buscarem inspiração onde queiram.
Essa parte da liberdade dessa suposta democracia em que vivemos permite determinadas violências, inclusive usar um sapato de 25.000 reais por “mérito”. Do mesmo modo, o rapaz em situação de rua e a deputada usam o que têm à mão, roupas doadas ou retiradas do lixo e um sapato que poucas mulheres no planeta todo podem ostentar. Mas pisarão as mesmas ruas e, como diziam os antigos, servirão aos mesmos vermes.
Mas eu nem conhecia Maria Vitória. Conhecia-a por conta de um sapato Prada bicolor, belíssimo, e a felicidade da dona de um restaurante de comida do dia a dia. Essas pequenas felicidades que rasgam qualquer livro de ética.
Sobre o casamento dela, eu fico pensando se ela ou o pai armou tudo aquilo, correndo riscos. Se fez isso, é corajosa. Só sei que as pessoas que comentaram o casamento estão muito (mas muito mesmo) mal informadas sobre casamentos ricos. Há casamentos muito mais ostensivos aqui mesmo na cidade, ou pelo menos casamentos de famílias locais. Há quem tenha construído um templo tailandês num hotel da Bahia, com trabalhadores braçais trazidos da Tailândia, há quem tenha levado os convidados para um país do norte da África e ainda presenteado os convidados com um guia da cidade onde seria realizada a cerimônia, feito especialmente para o casamento. Há festas realmente caras, realmente sofisticadas e realmente bonitas, que não parecem a abertura da Casa Cor, que não são bege como a poltrona de raposas da Casa Cor, e há festas em que se servem coisas realmente incríveis. Mas são festas — a despeito de seu valor e esmero, requinte ou exagero, mau gosto ou breguice — discretas. São feitas em clubes privados, no quintal da mansão, fora, como eu citei agora há pouco, e não no óbvio e ululante espaço do Castelo do Batel, ou dos clubes cujos nomes eu não preciso citar. Só não são feitas no centro da cidade.
Ainda sobre ostentação, ela é engraçada. Fui a um casamento em que a mãe da noiva usava um Givenchy de 65.000 reais. Parecia alugado no Alto da XV, como qualquer outro casamento “simples”. A noiva também gastou num Vera Wang … e jogou dinheiro fora. O vestido da Maria Vitória era realmente lindo — e até pessoas presentes no “ato” ficaram deslumbradas com o tamanho do véu. Ela queria algo como o vestido de Kate Middleton — e eu queria ser amigo da pessoa que a convenceu a usá-lo, e não os tomara-que-caia que já deveriam ter desaparecido das naves das igrejas. O cabelo também estava lindo e o visagista deve receber felicitações. Dias antes ou dias depois, outra fulana, muito mais rica (Miranda Kerr) casou-se com um vestido parecido. Lógico que era um Dior, e um vestido desses, feito com 800 mãos, durante 8.000 horas, pode chegar à assombrosa soma de 600.000 euros. Não sei se o cabeça de beterraba do pai da Maria Vitória teria essa coragem, a de torrar tantos euros num vestido. Dinheiro não falta, afinal, para quem compra fazendas por algumas vintenas de milhões…
E falando sobre uma cabeça de beterraba, não há Armani que dê jeito. Tampouco um capacete feito pelo vento, um capacete de balaiagens, com escova gorda… Nenhum personal stylist, nenhuma grife dá jeito nisso. As pessoas ricas também são vítimas dos padrões impostos, não pensemos que não… e há certa ironia nisso, um riso bem gostoso, uma vingança melhor que o ovo que não acertou nenhum membro da família Barros-Alborguetti, protegida por tantos guarda-chuvas.
Sobre essa noção de “requinte”, é importante falar da “tradição”, tipo fazer um bolo com o brasão da família… A ideia de buscar no passado bases para o presente não é nova. Os romanos foram buscar no mito de Troia um passado glorioso e fundador. Os nazistas foram buscar na Antiguidade um mito protetor, sob cujas asas poderiam se vangloriar de sua cor e de seu formato corporal. Hoje, busca-se num passado obscuro nomes, brasões, obras, até móveis em antiquários, que possam dar um lustro naquilo que é opaco, simples, pobre, ou sebento, mal-cheiroso, desqualificado, como é o caso do passado político dessa família. Trazer para Curitiba essa “tradição” soou tão mal que até o público convidado ria de lado, mesmo durante a festa. Foi um fiasco antológico.
Acho importante, sim, como tanta gente fez, lembrar que a igreja onde ela casou foi uma “igreja dos pretos” e que o clube onde rolou a festa leva o nome de um revolucionário, Garibaldi. Mas isso é mais um jogo de palavras. Qualquer igreja, tenho certeza, foi construída com o suor de pretos e de brancos, e a sociedade Garibaldi não preserva de modo algum qualquer discurso anarquista, a não ser que seja desses anarquistas que andam invadindo o face, os anarquistas grifados, que bradam pela anarquia do alto de suas bolsas da Capes ou do alto de seus sapatos Michael Kors, que, inclusive… deixa pra lá. (Só observando esse movimento, aliás.) Também não sei se as pessoas que lá estavam, estavam lá porque o ato político que faziam era contra uma “ostentação" (se for assim, vamos gastar muitos ovos no meio da rua, todos os dias, haja tanta SUV passeando por aí) ou um ato político contra políticos corruptos. Ambas as coisas?
O engraçado foi a festa na Sociedade Garibaldi ter dividido pobres e ricos. Alguns, que ficaram no “puchadinho” saíram reclamando da ofensa, afora saírem reclamando também dos ovos e do cheiro nauseabundo do chorume do lixo jogado na igreja e lá.
Concordo com a questão das listas, de se apontarem absurdos nos preços dos presentes, essas listas que são uma das invenções mais bizarras dos casamentos. É vulgar mesmo. É cafona. É ofensivo, me perdoem quem trabalha com cerimonial. Mas as pessoas realmente estão fora da realidade dos ricos: uma garrafa térmica de 2.000 reais é troco para quem gasta 5.000 num salão de beleza a cada fim de semana. E é uma migalha para quem abastece aviões e barcos (com o meu e o seu dinheiro, diga-se). Algumas listas chegam a ser indecentes. Mas discordo da questão de número de convidados e ainda da maneira “nova política rica” de presentear ongs e tais… Isso é pior. Se as pessoas presenteiam ongs e tais para se promoverem, o resultado é indecente. Que gastem seu dinheiro nos salões e nos ancoradouros… já que, ao que parece, os brasileiros já se acostumaram com isso, pois não reclamam, não queimam os barcos, não incendeiam os salões, não invadem as mansões com piscinas térmicas.
É nesses lugares que enfiam nosso dinheiro ou o dinheiro desviado de programas de saúde e de educação. Se for por isso, não mereceram ovos e sim um banho de excremento. Os ricos ostentam a cada sentada num restaurante e os casamentos são apenas circos de entrada franca perto do que gastam cotidianamente. Os gastos da Cláudia Cunha eram até comedidos, até porque não é lá muito fácil fazer várias compras na Chanel e trazer tudo isso enfiado numa mala. E ela não tinha esse (bom) gosto. Um costume da Chanel para mulher, o barato, feito à mão, custa por volta de 40.000 euros. Cláudia Cunha preferia óculos gigantes de grifes mais comedidas. Não era tão louca… e sua “cegueira deliberada”, que passou despercebida para o juiz local, não era tão cega assim.
Mas o mais legal de tudo não foi nada disso. Foi a “cobertura” do Bessa. Nada contra, nada a favor. Nem o conheço. Queria separar um trecho da cobertura do casamento.
Bessa pára na frente de um comensal, gordinho e cabeludo. Bessa o apresenta como um “chef" (?). Ele está feliz da vida e reconhece o amigo de muitas festas, o Bessa. Bessa pergunta a ele o que acha da noite. Ele, naquele momento, estava namorando uma lagosta de “uns dois quilos e meio”, ele diz. “Nunca se vê algo assim em Curitiba”, continua. Para ele, aquilo é símbolo de requinte. A lagosta jaz no alto de uma estrutura que enfeita uma mesa. No prato do rapaz, o chef, repousam outros bichos mortos. Bessa pergunta o que é. O sujeito sugere que são “filhos” da lagosta, algo assim, mas o mais incrível é a lagosta, lá como uma estátua de gelo de festa de filme americano. O rapaz, então, para finalizar a conversa, já que Bessa não é lá muito bom com perguntas, aconselha Bessa a ir até a mesa de frios. Lá estão presunto de Parma e queijo Brie na chapa, segundo ele…
Contei essa passagem do Bessa para chegar aqui, para dar o cenário do que viria depois. No domingo posterior ao casamento, eu no Pasta Gialla, escuto umas senhoras conversando sobre isso. Uma diz à outra: “credo, presunto de Parma e Brie eu como abrindo a geladeira!”.
Esta é a Curitiba da família de Maria Vitória, ou melhor, é a Curitiba que “recebe” uma família maringaense, nova rica e ostentosa, que um dia achou que um casamento no Centro poderia render dividendos. Rendeu. Maus dividendos.
Claro que, do mesmo modo que usar um Chanel verdadeiro não faz da pessoa alguém sofisticado, não limpa da história o amarrotado trajeto que um sujeito teve, usar um brasão de família não apaga um passado rastaquera. Usar certa igreja ou certo local não apaga o passado pé-vermelho que o cabeça-de-beterraba quer apagar a todo custo.
Mas isso tudo (brasões, bolos de seis andares, vestidos à Kate Middelton, etc.) são comentários maldosos. Quem define o que é bacana, elegante, luxuoso, bonito? Karl Lagerfeld, o sujeito mais falacioso da história da moda, que nem sabe se vestir (usar ternos Dior não faz dele, nunca fez, um sujeito elegante) ou Glória Kalil, que vive numa bolha inventada por ela e pela Globo, ou aqueles apresentadores de programas sobre vestir, que eles mesmos não sabem o que usar? Não é de hoje que se fala em árbitro do bom gosto. Petrônio já teve esse epíteto, e talvez por isso fosse bastante odiado. Então, falar em gosto é complicado. Igual umbigo, cada um tem o seu.
No caso da família da Maria Vitória, cafona não é toda a ostentação deles (rastaquera e chinfrim, a oferecer queijo brie na chapa para o povo do puchadinho, maravilhado com uma solitária lagosta graúda). Cafona e fora de moda é ter uma trajetória política tão feia, tão distante da realidade brasileira, tão aquém do que os brasileiros realmente necessitam, tão contrário ao interesse de milhões de pessoas. Isso é muito, mas muito feio mesmo, e não há álbum de fotografia que embeleze essa história política.
E ainda vai ficar na história a foto do traseiro do Orlando Pessuti subindo os poucos metros entre a igreja e a festa. Isso sim define nossa situação, em vários níveis. Para mim, é a foto do ano. Do ano, gente!"
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